1. A vontade política do governo PS é que todas as universidades passem a fundações.
2. Perversamente, o processo começou ainda antes de as universidades tomarem democraticamente as suas decisões quanto a isto. Como? Exigindo que as assembleias estatutárias incluíssem membros cooptados, “personalidades” de reconhecido “mérito” da “sociedade civil”.
3. Sob a capa da “abertura” à dita sociedade civil duas coisas são feitas: insinuar que as universidades são corporações fechadas; e lançar a ilusão de que os membros cooptados são a forma de as abrir. De permeio foi-se insinuando que as universidades portuguesas, com o sistema fundacional, passariam a ser como as americana. É não saber nada sobre as histórias e as sociedades dos respectivos países…
4. Nem todas as universidades são “fechadas” e mesmo as que o são não o são mais do que muitas instituições de outro tipo. Aliás, a especificidade positiva portuguesa tem sido a gestão democrática das universidades. Todos os cargos são eleitos; é normal haver várias listas; ninguém se eterniza no poder. É isto que o governo quer matar.
5. Os membros cooptados, por muito respeitáveis que possam ser, não “abrem” coisa nenhuma. A sua representatividade democrática é nula, e nem sequer representam organicamente instituições de algum modo ligadas ao âmbito das universidades como, por exemplo, as câmaras municipais da zona de influência ou algo assim. Logo aqui, nesta fórmula de inclusão dos cooptados, a gestão democrática levou uma machadada.
6.Daí ser natural desconfiar de que o que está em causa seja a vontade de empresarializar as universidades (no panorama da gestão PS, gato escaldado de água fria tem medo). Toda a gente sabe que as empresas não são (nem têm que ser) democráticas. Toda a gente sabe que o seu desígnio é o lucro. E toda a gente já percebeu que os partidários da política do governo propõem para cooptação as “personalidades” ligadas ao meio político “certo” e/ou ao meio empresarial.
7. Deve, no entanto, tudo ficar na mesma? Não. A falácia do governo e dos seus aliados nalgumas universidades é a de fazer crer que esta mudança é urgente para combater o atavismo, o corporativismo, o fechamento. Ora, mesmo quando ele existe, há outras maneiras de o ultrapassar. Não é por não haver fundações que raramente se renovou o pessoal docente (coisa que sempre defendi, equilibrando a importância de ter seniores de carreira longa, pois detêm experiência e conhecimento - numa actividade muito específica como é a ciência - renovando ao mesmo tempo o pessoal júnior, para trazer ideias frescas). O governo nunca mudou nada de substancial quer no sistema de financiamento, quer no estatuto da carreira docente - aliás, todas as mudanças destes anos, de Bolonha até este Regime Jurídico, se fez na ausência de qualquer alteração do estatuto da carreira docente universitária. O governo transforma assim a sua própria impotência ou falta de vontade política na justificação para uma mudança que poderá consistir no abandono da universidade como serviço público e, sim, tendencialmente gratuito. Um absurdo.
8. O ISCTE é um exemplo de como, no meio do atavismo que o governo e os seus aliados invocam (repito: infelizmente com razão no caso de algumas faculdades, essas sim ligadas a verdadeiras corporações profissionais…), se podem fazer mudanças: dinamizando e autonomizando a investigação, criando interdisciplinaridade, mantendo a democracia interna, promovendo uma cultura não ritualista e de informalidade, fazendo consórcios com empresas e instituições, internacionalizando, etc, etc. Foi, aliás, para gerar esse tipo de mudança que o ISCTE foi criado, e no seio do sistema público. O que falta verdadeiramente é renovar o pessoal docente e garantir financiamento. Só a fundação permite isso? Não sei, até porque não sabemos o que é uma fundação embora nos peçam para decidirmos (e favoravelmente, e à pressa, e sob pressão) sobre isso. Mas gostaria que se pensasse em alternativas que possam:
a) garantir que não se avança para uma privatização, mais ou menos encapotada: geradora de precariedade laboral; com lógica de lucro; transformando a universidade num politécnico de formação profissional, com uma lógica casuística de fornecimento temporário de especialistas para um mercado de trabalho que muda sistematicamente; sem garantir formação humana, científica e cultural de base alargada, sustentável e adaptável às mudanças; e acabando, é claro, com o conhecimento e a investigação fundamentais quer nas ciências quer, sobretudo, nas ciências sociais, humanidades, e artes.
b) garantir que se mantém a gestão democrática e uma visão do ensino superior como serviço público e base para a sustentabilidade de uma sociedade que preza e valoriza o conhecimento e a cultura.
Nalgumas universidades, sobretudo aquelas onde o espírito democrático está mais vivo e as ideias são manifestadas com mais liberdade (justamente porque souberam inovar a universidade do século XIX), a divisão é clara. Mas não se trata de uma divisão entre pró-fundação e contra-fundação. Corrijo: trata-se de uma divisão entre pró-fundação, sim (whatever it means, mas sabendo que corresponde, pelo menos, ao interesse em cumprir os desígnios do governo, avançando já para o novo modelo no 10 de Janeiro previsto na lei), e quem não quer avançar sem primeiro ser convencido por estudos e argumentos racionais sobre os benefícios do modelo fundacional e com garantias de manutenção do fundamental: a universidade como serviço público, como espaço de conhecimento livre, e gerida democraticamente.
Por Miguel Vale de Almeida n'Os Tempos que correm
6 de janeiro de 2008
Fundação ou afundação?
Publicada por Grupo de Acção Estudantil do ISCTE à(s) domingo, janeiro 06, 2008
Etiquetas: fundação no iscte, RJIES
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